Paris todo dia!!

06/09/2012 09:51

A capital francesa pode ser reconstituída, como tantos outros lugares, como um itinerário pessoal, como um roteiro de enredos multiplicados quase até ao infinito. Ou como um livro tão diverso quanto o número e a variedade de leitores.

Nenhuma cidade se furta a uma condição multidimensional: é a um tempo um espaço geográfico, um mosaico de expressões arquitectónicas, uma antologia de enunciações culturais, uma coda de registos históricos. E, sobretudo, uma colectânea de representações e mitologias, de imagens preconcebidas, de ideias feitas, de interpretações que se colam à pele do topónimo como retratos inquestionáveis e mais ou menos “eternos”. A cada geração, claro, algumas dessas representações e mitologias caem como galhos secos e folhas outonais; outras se renovam e se reconfiguram; e outras, ainda, são substituídas ou complementadas com novas narrativas.

A Igreja do Sacré-Coeur, em Montmartre, Paris
A Igreja do Sacré-Coeur, em Montmartre, Paris

Assim é, também, Paris, berço de luzes e de trevas no torvelinho da Revolução e dos anais do século XVIII, e outras periféricas centúrias, dos ecos visionários de Voltaire e Pascal e Descartes e Montesquieu, palco dos arrebatamentos de Robespierre, Danton e Marat no cenário de fogueiras em que começou a crepitar uma nova ordem política (ou esboços de várias) que acabaram por viajar além-fronteiras, além-continente. Paris e as suas outras luzes feéricas acesas na memória das vivências oitocentistas e novecentistas de gente das letras e das telas, do impressionismo ao surrealismo e a outras modas, de Flaubert a Miller, de Aragon a Sartre e a Hemingway, nesse século XX de peregrinações que atravessaram o Atlântico em busca dos seus mitos de travesseira.

De longas décadas de claridade guardam os museus parisienses vestígio e flama: Cézanne, Pissaro, Toulouse-Lautrec, Monet, Renoir, Degas, na antiga Gare de Orsay, onde o Angelus, de Millet, guarda um eterno poder de comoção; Kandinsky, Braque, Chagall, Klee, no Georges Pompidou; Picasso no museu homónimo lá para as bandas do chique Marais. Neste colossal acervo disperso pela cidade, há ainda o saque das investidas coloniais, o Obelisco da Praça da Concórdia, confiscado ao templo de Luxor, no Egito, e agora enregelado sob as neves invernais da Europa, as máscaras e esculturas africanas e orientais no novo espaço do Museu Branly, as antiguidades gregas e romanas, orientais, egípcias e mesopotâmicas na poeira secular dos labirintos do Louvre.

 

Bairro de Montmartre, Paris
Bairro de Montmartre

Paris é também, como todas as demais cidades, uma antologia de imagens pessoais, transformadas e recicladas pela memória, e, igualmente, dos universos culturais em que se fragmenta a cultura europeia, esse viveiro de vozes e polifonias que assumem a missão de estilhaçar as fronteiras dos velhos - e de má memória - nacionalismos. A Paris, também, de gente de outros continentes que veio trazer lufadas de ar fresco à música popular, a Paris de Manu Dibango, de Salif Keita, de Youssou N'Dour, da Orchestre Baobab, de Ray Lema, de Cheb Khaled, de Cheb Mami, de Natasha Atlas.

E nesta enciclopédia de infinitas reconstruções de um território urbano multidimensional, eis a Paris mais gráfica e visual, a dos espaços com arquitectura dentro: dos ícones mais elementares, como a Torre Eiffel ou a cúpula do Sacré-Coeur a coroar Montmartre, com o seu circo de artistas de rua na Place du Tertre, até à mole de pedra do Louvre com as suas romarias turístico-domingueiras à Mona Lisa; do Jardim e Palácio do Luxemburgo, capricho residencial de Maria de Médicis saudosa da sua Toscânia natal, à ponte Eduardo III ou ao imperial Arco do Triunfo, em bicos de pés na geometria de parada militar dos Champs Elisées. Do Boulevard St-Michel, com as suas livrarias e alfarrabistas, à mais bela ágora da cidade que foi musa de Piaf e de Montand, a setecentista Place des Vosges, onde, num dos seus (re)cantos Victor Hugo terá escrito as páginas de «Os Miseráveis». Da rive gauche e de St-Germain-des-Prés à Place Vendôme ou ao gótico de St-Eustache, da picante Pigalle às graças científicas de La Villette.

Tudo isso está lá, como postais em escaparates do tamanho de ruas e boulevards. Às vezes de modo invisível. Vertigens como a Bastilha, e o seu carrossel de automóveis a despejar nuvens de dióxido de carbono sobre o anjo dourado, ainda poderão evocar a poesia visual de Tati no cenário de artifício de «Playtime»? E, em algumas esquinas, o toque de aventura rebelde de Belmondo e Ana Karina nas peripécias de “O Acossado”, de Godard? Para lá da porta cerrada de um pátio, o charme discreto de Catherine Deneuve na «Belle de Jour»? Não há resposta de uma simples palavra.

 

Jardim do Luxemburgo, Paris
Jardim do Luxemburgo

Velha como as gárgulas de Notre-Dame, pedante como a arquitectura de fortaleza emproada e engravatada de La Defense, fútil como os desfiles de moda dos “criadores”, que as convenções transmutam em génios e artistas, bem-pensante nas páginas de filósofos social-futuristas, refúgio pós-colonial e neo-colonial de músicos e artistas africanos, “Paris c'est une idée”, como trauteava Leo Ferré num jazz afrancesado e sarcástico. Uma ideia desmultiplicada em miríades de cansadas representações e mitologias.

Que Paris resta, afinal, dessas iluminuras pessoais? Que Paris resta para além da que se ama sem se saber exactamente por que razões? Cole Porter, entre acordes de piano, terá ensaiado algumas respostas. Numa das suas mais célebres canções (e com um pouco da candura dos noivos de «L'homme qui aimait les femmes», um filme em que Truffaut passeia as personagens por tantas ruas de Paris), há uns versos que arrumam a cidade na condição irremediável de fantasia subjectiva: “And why do I love Paris? Why do I love Paris? Because my love is near...”. Enfim: cada viajante leva consigo as imagens que há-de ver e reconhecer. Sim, “Paris c'est une idée”.

E há, finalmente, a “saison”, vária, múltipla, farsante de mil caras. Submissa a mil gostos e apetites, de acordo com infinitas narrativas: as das revistas de viagens e suas provincianas “descobertas”, as da moda e os seus umbigos viciosos, as do “salon auto” escarnecido por Renaud nas suas sátiras ao hexágono, as das lulus sussurrantes dos anúncios de perfumes, etc., etc., etc. Abril é outra dessas narrativas, a da Primavera que prepara e ordena o reinício de tudo, ou, simplesmente, acende do nada um inesperado princípio. Talvez fosse disso que falava Vernon Duke em «April in Paris», cançoneta “imortalizada” por incontáveis intérpretes e inúmeras versões. Talvez nela possamos ouvir, finalmente, um convite a deambular por Paris sob o sol cálido de Abril, meditando sobre a inesperada fecundidade dos lugares: “I never knew the charm of spring / I never met it face to face / I never knew my heart could sing / I never missed a warm embrace / Till April in Paris / Whom can I run to / What have you done to my heart”.